O Brasil ficou mais pobre intelectualmente, morreu ontem (27/03) no Rio de
Janeiro, aos 87 anos, o multimídia Millôr Fernandes. Assista aos vídeos e
conheça um pouco mais este homem extraordinário.
Biografia
Milton Viola Fernandes (Rio de Janeiro RJ 19231-
Idem 2012). Autor e tradutor. De humor singular, humanista e moderno, com visão
cética do mundo, Millôr Fernandes é uma figura de proa no panorama cultural
brasileiro: jornalista, escritor, artista plástico, humorista, pensador,
destaca-se em todas essas atividades. No teatro, empreende uma transformação no
campo da tradução, tal a quantidade e a diversidade de peças que traduz e a
pessoalidade com que o faz. Escreve, com Flávio Rangel, Liberdade,
Liberdade, uma das peças pioneiras do teatro de resistência à ditadura militar,
encenada em 1965.
Quando estréia em teatro, já é
nacionalmente conhecido por meio da coluna humorística semanal em O Cruzeiro,
assinada com o pseudônimo Vão Gogo. Suas primeiras peças são ainda
imaturas: Uma Mulher em Três Atos, levada no Teatro das Segundas-Feiras
do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC),
paulista em 1953, filia-se à tradição de fantasiosa comédia do cotidiano
carioca, então cristalizada por Silveira Sampaio; Do Tamanho de um Defunto
e Bonito como um Deus, no Teatro de Bolso do Rio em 1955, se inscrevem
no mesmo gênero e apresentam traços semelhantes aos do texto de estréia; A
Gaivota, explora o terreno do drama lírico.
Seu primeiro sucesso de público é Pigmaleoa.
Escrita em 1955, mas só montada em 1962 pelo Teatro do Rio, com direção de Adolfo Celi, aborda humoristicamente o
cotidiano de Copacabana. Bem maior, porém, é o êxito de Um Elefante no Caos,
montada pelo Teatro da Praça, no Rio de Janeiro, em 1960, com premiada direção
de João Bethencourt, e em São Paulo, em 1961, com
direção de Egídio Eccio. Em torno de uma situação de puro teatro do absurdo -
um incêndio que consome um imóvel durante seis meses, porque na hora em que os
bombeiros quase conseguem apagá-lo falta água para terminar o trabalho -,
Millôr compõe um hino de amor ao irresponsável jeito carioca de viver. Flávia,
Cabeça, Tronco e Membros, escrita em 1963, foi durante muito tempo
considerada pelo autor como a obra de maior peso e alcance.
A realidade instalada no Brasil a
partir do golpe de 1964 dá um novo rumo ao teatro de Millôr Fernandes: defensor
do livre arbítrio, ele se torna, desde o início, um ferino questionador do
esquema repressor que domina o país. O primeiro fruto desta atitude é Liberdade,
Liberdade. Escrita com Flávio Rangel, que dirige o espetáculo montado
no Grupo Opinião em 1965, está entre as
obras pioneiras do teatro de resistência. Os autores conseguem obter uma
coerente estrutura dramatúrgica com pequenos textos da literatura universal
dedicados ao tema da liberdade, costurados com canções sobre o mesmo assunto, e
com corrosivas piadas de Millôr e Rangel, aproximando as tomadas de posição de
autores de outros tempos e países, da situação brasileira de 1965. Embora bastante
questionado na época, por ser mais um show do que propriamente uma peça de
teatro, Liberdade, Liberdade revela-se uma iniciativa seminal, que
influencia fortemente a dramaturgia da década. O espetáculo faz enorme sucesso
no Rio de Janeiro e em longa turnê pelo país, tendo tido desde então muitas
novas montagens no Brasil e no exterior. Na mesma linha de coletânea,
Millôr volta a alcançar sucesso com O Homem do Princípio ao Fim,
com direção de Fernando Torres, 1966. A seleção de textos tem
como denominador comum o ser humano diante de si mesmo e do universo, e é
valorizada pela notável interpretação de Fernanda Montenegro. Computa,
Computador, Computa, 1972, é uma compilação de anedotas e piadas da qual se
desprende a visão do mundo de um humorista amargo e rebelde, também com
Fernanda em cena. Voltando à estrutura dramatúrgica convencional, já sem a
fórmula da coletânea, Millôr cria É..., 1977, a sua comédia mais
amadurecida e bem construída, na qual retrata criticamente as repercussões da
recente revolução de costumes na vida dos casais de meia-idade representativos
da intelectualidade progressista. O espetáculo dirigido por Paulo José, com outro ótimo desempenho de
Fernanda Montenegro, faz uma carreira recorde
de três anos, entre Rio de Janeiro, São Paulo e visitas a outras capitais. Em
1980, outra obra de Millôr, mais polêmica e ousada, alcança êxito: em Os
Órfãos de Jânio ele se inspira na fórmula dramatúrgica criada pelo
americano Robert Patrick para Os Filhos de Kennedy, reunindo num bar
personagens marcados, cada um a seu modo, pela evolução da sociedade brasileira
nos últimos vinte anos, que monologam sobre as suas trajetórias e destinos,
compondo um dramático, contundente e polêmico miniuniverso da realidade
nacional.
Outra vertente significativa da
criação teatral de Millôr Fernandes é o seu trabalho como tradutor, certamente
o melhor e mais importante que o nosso teatro já teve; e também o mais
prolífico, a ponto de ter transformado essa atividade num quase monopólio
pessoal, no setor da produção teatral. O acervo de muitas dezenas de traduções,
que vai do clássico - Rei Lear, de William Shakespeare - ao moderno - As Lágrimas
Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder, passando pelo
musical - Chorus Line, de James Kirkwood e Nicholas Dante. Revela
virtuosismo verbal e criatividade no ato de tornar autênticas e teatrais, no
vernáculo, as falas criadas a partir de outras tradições e convenções
idiomáticas. Às vezes ele interfere na escrita original, tornando-se quase um
recriador; outras vezes, a sua tradução opta por um caminho mais discreto.
Ao apreciar sua contribuição ao teatro
brasileiro, o crítico Yan Michalski observa que todas as
atividades que Millôr Fernandes realiza têm "... uma matéria-prima comum
de coerência, feita de um humanismo que paira por cima de todas as ideologias,
e que se mostra cético quanto à capacidade do ser humano de superar a
mediocridade da sua condição, mas ao mesmo tempo aposta na sua grandeza
intrínseca, e se dispõe a lutar pelos seus direitos à preservação dessa
grandeza. Seu teatro, plenamente coerente com essa visão do mundo, talvez não
seja, isoladamente, o elemento que mais se destaque nesse espantoso conjunto de
talentos, não obstante a autêntica revolução que ele operou no terreno da
tradução. Mas sem a sua contribuição ao teatro, atividade por excelência
integradora de todas as artes, a polivalência desse artista completo perderia
muito da sua admirável abrangência".2
Notas
1 Millôr Fernandes nasce em 16 de agosto de 1923, contudo é registrado em 27 de maio de 1924. Por isso, em diversos lugares, o ano de nascimento aparece como 1924.
1 Millôr Fernandes nasce em 16 de agosto de 1923, contudo é registrado em 27 de maio de 1924. Por isso, em diversos lugares, o ano de nascimento aparece como 1924.
2. MICHALSKI,
Yan. Millôr Fernandes. In: ___________. PEQUENA
Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo. Material inédito, elaborado em
projeto para o CNPq. Rio de Janeiro, 1989.
TRANSCRITO: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=807
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